quinta-feira, 29 de abril de 2010

Um Conto de Natal

24 de dezembro.
Já estava ficando tarde, e nada de encontrar a maldita boneca. Tinha ido a cinco lojas de brinquedos, e em todas a boneca já havia esgotado. Não deveria ter deixado para comprar de última hora. A maldita boneca da bolha de sabão. Desde que sua filha viu, não falava em outra coisa a não ser em ganhar a boneca no Natal.
A última loja de brinquedos estava logo a frente, estacionou duas ruas antes. Exatamente como as outras, essa também estava abarrotada de pais. Parecia que estava no meio de um bando de selvagens famintos. Um simples olhar desinteressado era interpretado com malícia, se tornando motivo suficiente para agressões verbais, e muitas vezes físicas. Duas mulheres, no fundo da loja, estavam sendo separadas pelos vendedores, uma acusava a outra de ter roubado o brinquedo que pretendiam comprar.
Proucurou saber da boneca com um dos vendedores, foi infomado que a tal boneca já havia esgotado, e que a última acabara de ser vendida. O vendedor apontou a mulher na fila. Ela segurava a boneca com as duas mãos, com medo do brinquedo ser arrancado à força, ou sair correndo para os braços de outra pessoa. Ao chegar perto e tocá-la no ombro, ela rosna dizendo que não irá vendê-la de forma alguma; por certo já havia sido abordada por outra pessoa. Ele oferece quase o triplo do valor da boneca, mas ela não cede.
Desesperado, sai da loja apinhada de pais, e espera ela sair, pretende abordá-la novamente e se ela rejeitar o dinheiro com fez anteriormente, pegaria a boneca mesmo assim. Ela aparentava estar sozinha. Seria fácil.
Cruza a rua e encosta na parede.
Acende um cigarro.
E espera.
Estava tremendo.
Um sedã preto estaciona no meio da rua, em frente a loja, um homem alto salta do carro, entra na loja, três minutos depois ele sai acompanhado da mulher que comprara a boneca.
Furioso, ele joga o cigarro no chão. Volta ao seu carro. Ele vê uma pracinha. Resolve ir até lá para esfriar a cabeça. A pracinha está praticamente vazia, a não ser por algumas crianças que brincavam de esconde-esconde. Afastado da pracinha havia um parquinho, onde apenas uma menina brincava sentada no alto do escorrego de pedra. Segurava uma boneca e falava com ela. Usava um vestido azul claro e sapatos pretos. Por não conseguir ouvir o que ela dizia, resolveu se aproximar. Achava engraçado quando sua filha fazia isso, gostava de ouvir a conversa, rendia boas gargalhadas. Deu a volta no parquinho para não assustar a criança.
Ela cantava.

"Sentada na calçada de canudo e canequinha
Tublec, tublin
Eu vi uma bonequinha..."

Ele deu um salto. Ela tinha a boneca que ele procurou o dia inteiro. Paralizado olhando as costas da menina, sua mente girava dando inúmeras ideias de como conseguir a boneca tão procurada. Seria mais fácil do que roubar da mulher um pouco antes, a sorte sorria para ele. A menina não conseguiria nem reagir, quando ela se desse conta seria tarde demais.
E se ela chorasse?
Não importa. Ninguém ouviria.
Ela ainda cantava.

"Fazendo uma bolinha
Tublec, tublin
Bolinha de sabão."

Estavam rodeados de bolhas de sabão.
Tudo aconteceu muito rápido. Num segundo ele estava em cima dela, que ao contrário do que pensou, reagiu rápido e segurou a boneca pelas pernas, mas por ser muito leve foi posta de pé com facilidade. Ela não iria soltar, pensou ele. Pôs o pé no pequeno peito e empurrou, ela perdeu o equilíbrioe caiu do escorrego.
De cima ele a viu, mergulhada em seu próprio sangue ainda quente. Ele correu com a boneca nas mãos. Conseguiu o que queria, mas a que custo?
Colocou a boneca no porta malas.
Entrou no carro ofegante.
Dirigiu-se para casa. Não acreditava no que tinha feito. Era agora um assassino.
Dirigia a cima do limite de velocidade.
Sinal vermelho.
Ele para em cima da faixa. Um velho que atravessa a rua pragueja contra ele. Respira fundo, o mundo ainda gira, sua visão está turva.

"Sentada na calçada de canudo e canequinha..."

Ele salta. Um calafrio percorre seu corpo. Olha ao redor, não vê nenhuma criança por perto. Está suando frio, fecha os vidros.

"Eu vi uma bonequinha..."

Ele grita. O canto vem de dentro do carro.

"Fazendo uma bolinha..."

Pelo retrovisor vê a boneca no banco de trás. Como ela poderia estar ali? O suor desce pelo rosto, encharcando ainda mais sua blusa.

"Bolinha de sabão"

É a voz da menina do parquinho. A boneca começa a fazer bolhas, logo o carro está cheio e ele tem que abrir os vidros.
Sinal verde.
Ele dispara quaser atropelando uma mulher que ainda está na faixa. A boneca continua cantando. Ele tenta pegar a boneca com seu braço direito, mas ela "foge" e fica fora do seu alcance.
Atordoado, acelera o carro. Isso é uma alucinação, pensa.
Ela canta cada vez mais alto.
Ele não suporta mais. A música está dentro da sua cabeça.
Acelera.
Sinal vermelho.
Ele não para.
Uma blazer atravessa o cruzamento e bate em cheio na lateral do carro. É arratado alguns metros depois capota uma, duas, três vezes.
No meio das ferragens ele vê um par de sapatos pretos se aproximando e pegando a boneca, que não sofreu nenhum dano. Não dá pra ver o rosto, até que ela se abaixa e se põe no seu campo de visão. Sua cabeça está aberta, parte do cérebro está exposto, tem sangue por todo vestido azul. Ela sorri e se vai.
Ele é engolido pela escuridão. Tudo que resta é o vazio e o som da voz infantil que canta.

"Sentada na calçada de canudo e canequinha
Tublec, tublin
Eu vi uma bonequinha
Tublec, tublin
Fazendo uma bolinha
Tublec, tublin
Bolinha de sabão."


FIM


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