segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Coleta Seletiva

Uma semana atrás eu tinha uma vida comum, casado, dois filhos, tinha uma casa maravilhosa num bairro nobre e um emprego com um salário razoável. Já ouviu falar que desgraça nunca é pouca? Pois então. Uma semana atrás minha esposa resolveu se separar de mim. O motivo: tinha conhecido alguém no supermercado, eles estavam apaixonados, iam morar juntos e as crianças iam com ela. Não pude argumentar nada contra, as crianças adoravam o Paulão. Até eu adorei o Paulão. Ele era divertido, falava bem, sorria muito, era gentil com a Sandra e com as crianças. Quando ela meu deu a noticia ele estava do lado dela, sabe, para dar apoio. Eu não falei nada, não consegui. Levantei e fui para o trabalho. Ao chegar recebi a noticia, tinha sido demitido. Eu e mais 499 empregados, era tempo de vacas magras e a empresa tinha que cortar gastos. Eu não falei nada, não consegui. Voltei para o meu carro e dirigi, dirigi até não sentir mais. Não queria sentir, queria ficar anestesiado. Dirigi por oito horas, andei a cidade inteira. Senti fome e parei numa lanchonete qualquer, não falei nada, apenas apontei para uma coxinha que me pareceu apetitosa. Comi, paguei e ao me virar para sair, um Ford K entra na contra mão sem controle e bate em cheio no meu pequeno Fiat Uno. O rapaz que dirigia saiu ileso, meu carro não. Eu não falei nada, não consegui. Resolveria com o seguro depois. Peguei um ônibus de volta para casa, parei umas ruas antes, queria andar um pouco. Passei por uma banca de revistas, uma onde sempre compro meus jornais. Vi um livro na vitrine: Desperte o Gigante Interior, escrito por um tal de Anthony Robbins. Achei que aquilo me ajudaria. Apontei para o livro e comprei. Levei para casa, ao chegar em casa não tive coragem de lê-lo, deixei em cima da mesa do escritório, a casa estava vazia, a Sandra e as crianças já haviam saído. Abri a geladeira, peguei a nutella ainda cheia, sentei na minha cadeira do papai e liguei a TV, dormi de paletó. Acordei no dia seguinte depois das dez da manhã. A TV ainda estava ligada, desliguei. Já estava fedendo, não tive ânimo para levantar, liguei a TV novamente. Senti fome, fui até a geladeira peguei uma caixa leite, um pão, passei geléia e voltei para a minha cadeira. Fiquei assim por três dias, sem atender telefone, sem sair de casa e sem banho. Lembro que a Sandra foi lá, me deu um sacode. Mas eu não falei nada, não consegui. Depois que ela saiu, eu levantei fui até o escritório, peguei o tal livro que tinha comprado. Deitei no sofá e li-o inteiro em quatro dias, parando apenas para comer e dormir. Ao terminar a última frase, coloquei-o de volta na mesa do escritório, subi para o banheiro, olhei-me no espelho. Quase não me reconheci, barba grande, cabelo desgrenhado, minha camisa estava manchada de comida. Tomei banho, fiz a barba, vesti um calção e uma blusa do AC/DC. Desci, notei que a casa estava uma zona, por dias eu tinha morado na sala. Limpei a sala e a cozinha, dei uma geral no escritório. Ao final estava todo suado, subi novamente e tomei outro banho. Vesti meu melhor paletó, usei meu melhor perfume. Desci e peguei o livro. Lá fora ouço o rapaz chegando.

_COLETA SELETIVA! Grita.

Fui à cozinha, peguei o saco verde e me dirigi à porta da frente. Fiz sinal para que ele esperasse, abri o saco e comecei. Arranquei página por página do livro, e fiz questão de rasgar cada uma em quatro partes. Joguei tudo dentro do saco. O rapaz da coleta me olhava curioso, mas não perguntou nada, já me conhecia e sabia que eu era calado. Levantei, dei um nó no saco e entreguei ao rapaz.

_Tenha certeza que seja reciclado e se torne algo útil.

O rapaz pega e joga na carroçinha que traz.

_Tudo certo, doutor. Sem querer ser tão curioso, onde o senhor vai tão arrumado e perfumado?

_Vou para casa da mamãe.